Eduardo Schneider Lersch
Em uma época em que a interseção entre sustentabilidade ambiental, crise climática e segurança global se tornam cada vez mais pronunciadas, o conceito de segurança ambiental surgiu como forma de chamar atenção ao problema para os formadores de políticas públicas. À medida que nosso planeta enfrenta desafios sem precedentes com as mudanças climáticas, esgotamento de recursos e a degradação ecológica, as implicações para a segurança nacional e internacional são aprofundadas interdisciplinarmente.
As questões ambientais ganharam espaço no campo do Direito e da ciência política à medida que aumentaram as preocupações com os riscos relacionados aos impactos das atividades humanas no funcionamento das sociedades hodiernas. A segurança ambiental é entendida como a proteção e a preservação do meio ambiente contra danos, poluição e degradação, o que envolve a implementação de políticas, regulamentações e práticas destinadas a garantir a sustentabilidade dos ecossistemas naturais, da saúde e o bem-estar das comunidades que dependem desse meio ambiente.
As preocupações com a segurança ambiental incluem diversas variáveis que refletem a realidade da discussão. A escassez de recursos naturais, os interesses nacionais, os possíveis conflitos violentos, o deslocamento forçado de pessoas, a preservação de ecossistemas essenciais ao equilíbrio ecológico, entre outros, fazem parte da contextualização do problema. Foi sobretudo na década de 90, com as renovadas perspectivas de paz e diminuição de conflitos que estenderam o conceito de segurança de nações para grupos, indivíduos, sistemas e organizações internacionais e eventualmente para a integridade da biosfera.
Sendo assim, os estudos sobre “segurança” vêm se expandindo para incluir conotações que fogem do escopo tradicional, notadamente de cunho militar e de segurança nacional. Embora as tensões militares e os conflitos violentos ainda guiem a priorização hierárquica dessa agenda, é inegável que houve uma abertura do conceito, especialmente no meio acadêmico após a queda do muro de Berlim, abrangendo novas tipologias, críticas e ensaios.
As preocupações com o meio ambiente surgiram com mais frequência a partir da década de 1970, solidificando-se nas décadas seguintes com o surgimento das crises ambientais globais. O debate começou a ganhar força à medida que as consequências da degradação ambiental se tornou mais evidente, movimentando importantes atores globais, como a emergência para dirimir a deterioração da camada de ozônio, e a crescente preocupação com aquecimento global. Além disso, países com índices significativos de destruição ambiental, insegurança alimentar e rápido crescimento populacional eram objeto de análises de segurança incorporada com aspectos ambientais, estratégia adotada por pesquisadores e ambientalistas numa tentativa de atrair a atenção de formadores de opinião e políticas públicas.
Para Maria Julia Trombetta, a relação entre o meio ambiente e a segurança destacou algumas das consequências da degradação ambiental que, no entanto, não penetraram na análise tradicional de risco e segurança: “em termos analíticos, parecia ser uma forma de explicar melhor as novas tipologias de vulnerabilidade, bem como o potencial de conflito e violência ao qual essas vulnerabilidades poderiam estar associadas”[1].
Diferentes escopos de análise são apresentados quando a segurança e o meio ambiente são confrontados. Em primeiro lugar, a segurança humana global é considerada no contexto do Antropoceno e da sociedade de risco[2], tendo em vista o potencial catastrófico desencadeado pelas mudanças climáticas. A partir dessas circunstâncias, argumentos de segurança “tradicionais” são invocados, envolvendo a defesa de interesses supranacionais, não necessariamente com significado militar, representando uma lógica transformadora na análise de segurança. Javier Sánchez Cano destaca três tipologias de como o conceito de segurança é usado[3]:
1) Uso político: Deriva da ação política e de seu discurso. As medidas geralmente são invocadas a posteriori, como uma emergência diante de uma situação atual, mobilizando recursos importantes, autonomia, mas também sigilo em determinadas decisões e gerenciamento de crises.
2) Uso analítico: Usado na análise conceitual dentro da teoria social. Implica um conceito usado anteriormente e depois adaptado à realidade.
3) Uso programático: Incentiva o debate por meio do desenvolvimento e do uso de novos conceitos, princípios, políticas, organizações, tecnologias e análises. É considerado programático quando há o uso de conceitos de segurança para promover mudanças, com base em situações atuais, entre parâmetros que orientam a ação, o discurso e os fundamentos em diferentes campos do conhecimento[4].
No campo jurídico, a segurança ambiental é o objeto de estudo de "instituições, mecanismos e técnicas para a prevenção e resolução de disputas ambientais internacionais que surgiram ao mesmo tempo em que o esgotamento de determinados recursos naturais”. No campo da ciência política, há um debate sobre a pertinência do uso do termo “segurança” para termos ambientais e/ou ecológicos. Maria Julia Trombetta explica que: “a palavra segurança implica uma lógica ou racionalidade específica, independente do contexto ou da intenção dos falantes”. Simon Dalby faz uma observação semelhante, sugerindo que a vinculação desses conceitos à segurança requer o desafio dos fundamentos predominantes da geopolítica, das relações internacionais e da formulação de políticas, a fim de diferenciar o uso desse conceito entre diferentes áreas do conhecimento[5].
Portanto, as propostas sobre novos princípios e conceitos de segurança tem o objetivo de elevar o nível do debate. Em primeiro lugar, é uma forma de orientar políticas e práticas públicas, desde sua teorização até a criação de diretrizes práticas. Em segundo lugar, serve para conscientizar o público, divulgando o pensamento atual sobre os novos conceitos e os objetivos dessas iniciativas. Em terceiro lugar, é uma forma de desafiar as políticas existentes e as definições predominantes. O contraponto de fundamentos de políticas dessa natureza enriquece o debate e dá origem a novas proposições. Por fim, é também uma forma de influenciar a distribuição de poder e recursos, por exemplo, propondo a redução dos gastos com o orçamento militar, alocando esses recursos em programas e organizações de defesa ambiental[6].
Com o avanço da crise climática, estão surgindo discussões sobre como se adaptar a um novo paradigma de defesa planetária e segurança global[7]. A discussão é relevante, pois há uma mobilização mundial em face das ameaças à humanidade causadas por fatores externos, mas o planejamento para ameaças internas não é objeto de tanto escrutínio. Nas circunstâncias atuais, a ação institucional parece se basear na premissa de que as ameaças internas são inexistentes ou imunes a esse tipo de intervenção. De um ponto de vista mais biocêntrico ou ecocêntrico, há uma discussão mais profunda sobre “segurança ecológica”, considerando o equilíbrio de todas as espécies e ecossistemas na natureza, afetados justamente pela intervenção humana[8].
Nesse contexto, a segurança tem um significado que remonta à proteção. A escolha do termo “segurança” não carrega o mesmo sentido tradicional de um conflito armado ou militar, mas sim uma questão de governança para evitar esse tipo de escalada, englobando questões de gestão de recursos naturais, prevenção de desastres ecológicos, defesa da sustentabilidade e sua aplicação para preservar aspectos críticos para a sobrevivência de todas as espécies. No entanto, Jávier Sanchez Cano reflete que a escolha do termo não está muito distante dessa realidade, uma vez que a degradação ambiental tem potencial catastrófico em escalas semelhantes às guerras, e a relação entre ecologia e conflito armado é mais próxima do que se supõe, especialmente em regiões subdesenvolvidas, ricas em recursos naturais e ecossistemas exóticos[9].
Nesse sentido, a realidade de países latino-americanos oferece um contexto importante quando se trata de questões de segurança, inclusive segurança ambiental ou ecológica. Os níveis de insegurança (em todas as áreas relevantes) vivenciados no dia a dia dos cidadãos dessas nações são muito diferentes daqueles percebidos pelas nações e regiões mais prósperas. A segurança ambiental é frequentemente vinculada a atividades extrativistas como: “os problemas de governança e o fracasso da democracia em certos países da América Latina tornam mais visíveis os conflitos socioambientais relacionados às atividades extrativistas”[10]. A questão também é analisada sob a perspectiva da segurança das populações indígenas, que são objeto de proteção especial nos sistemas jurídicos latino-americanos e estão localizadas em áreas remotas e, infelizmente, são alvo de políticas extrativistas lícitas e/ou ilícitas.
Em um contexto mais amplo, a mudança climática é vista como um “multiplicador de ameaças”, muitas das quais estão diretamente relacionadas à segurança humana em nível local, regional e global[11]. À medida que as consequências das mudanças climáticas se tornam cada vez mais externas, é possível observar uma mudança no discurso político e institucional, com um retorno aos conceitos de segurança global e humana[12]. O consenso é importante quando se trata de coordenação em nível internacional, pois a comunidade de atores envolvidos precisa identificar os limites dos sistemas tradicionais e racionalizar os instrumentos que serão usados. O contexto de urgência precisa ser considerado para evitar medidas excepcionais que desequilibrem a relação de força e poder entre os envolvidos, tornando a segurança opressiva e, paradoxalmente, transformando-a em uma fonte de insegurança.
Trombetta sugere que o processo de “securitização” dessas novas análises difere dos estudos tradicionais de segurança, mesmo em sua adaptação. Nesse sentido, essa metodologia se encaixa bem no conceito de sociedade de risco, porque esse parâmetro:
“desafia a lógica da violência, do antagonismo e da guerra sugerida pela securitização. Isso sugere um conjunto de práticas de segurança baseadas no gerenciamento de riscos e na prevenção. [...] “A securitização é amplamente entendida como a construção social de uma questão como uma questão de segurança - pode ser considerada como um processo reflexivo que não é apenas ‘dirigido por regras’, mas também ‘altera regras’ (Beck 1997, 134). A securitização não se trata de aplicar um significado fixo de segurança como excepcionalidade que inscreve os inimigos em um contexto. Em vez disso, é “um processo sempre (situado e iterativo) de geração de significado” (Stritzel 2007, 366). Ao securitizar questões não tradicionais, a incongruência de uma lógica específica de segurança aparece enquanto diferentes práticas são aplicadas. Nessa estrutura, a construção tanto das ameaças quanto das regras pelas quais a segurança é realizada está aberta a um processo de construção e transformação social.[13]” (tradução nossa)
A lógica da análise da securitização permite uma ação institucional coerente, bem como a coordenação entre os atores ambientais em vários níveis e áreas, gerando um processo social que especifica as ameaças prioritárias e estabelece ações, enfatizando aquelas que são preventivas e coordenadas não apenas por ações estatais que designam “inimigos” e promovem a segurança com base em conceitos tradicionais. Como no caso da luta contra as mudanças climáticas, a importância do conceito de segurança ou proteção dentro desse paradigma é ampliada, mostrando que o processo de securitização dessa ameaça é reflexivo e contextualizado para gerar novos significados e práticas multifacetadas e interdisciplinares.
Na mesma linha, Webersik destaca que “a mudança climática não é mais uma questão de desenvolvimento ou meio ambiente, mas agora é uma questão de paz e segurança internacional. Aqui, um conceito ampliado de segurança pode capturar grande parte das questões relacionadas à segurança das mudanças climáticas, incluindo segurança alimentar, escassez de água e migração[14]”. Em outras palavras, a segurança ambiental envolve tópicos sobre segurança humana, enquanto os riscos decorrentes da crise climática podem levar a conflitos e disputas violentas. A garantia de políticas públicas e ações institucionais coerentes contra as mudanças climáticas é adequada à ampliação do conceito de segurança, mas não está separada das questões tradicionais de segurança. Na verdade, ela traz as mesmas preocupações que um dos assuntos de segurança mais “convencionais”, já que “a segurança ambiental substituiu a ameaça de uma guerra nuclear global, pois compartilha duas características: ambas têm alcance global e seus efeitos podem ser altamente devastadores”[15].
Para além da coordenação internacional, é necessário um aperfeiçoamento das conjunturas regionais e locais. O arcabouço normativo da realidade brasileira e latino-americana contém um quadro denso de proteção ambiental, voltado a proteção de populações, ecossistemas e espécies vulneráveis. A atuação institucional tem um viés de securitização ainda que tácito, todavia, sua eficácia precisa ser aprimorada. A defesa do meio ambiente já passa pelo crivo do sistema interamericano de proteção de direitos humanos[16].
Dentro do contexto de insegurança vivenciado, sobretudo em países latino-americanos, de retrocesso ambiental, da multiplicação de crimes extrativistas e de degradação em áreas de preservação, bem como, conflito violento contra comunidades e populações inseridas nessas áreas, o assunto é relevante e merece maior atenção de autoridades. Somente compreendendo os vínculos intrincados entre o meio ambiente e a segurança, podemos promover um futuro mais resiliente e sustentável para todos.
[1] TROMBETTA, M. J. Environmental security and climate change: analyzing the discourse, Cambridge Review of International Affairs, 21:4, 585-602, 2008, DOI: 10.1080/09557570802452920
[2] De acordo com Ulrich Beck, a sociedade de risco é identificada pela presença e pelo gerenciamento generalizados de riscos, especialmente aqueles que são gerados pelas atividades humanas na era moderna. Beck argumenta que a sociedade contemporânea deixou de se concentrar na distribuição de riqueza para se concentrar na distribuição e mitigação de riscos e perigos, desencadeados por causas sistemáticas que são congruentes com o impulso para o progresso e o lucro. Os riscos na sociedade moderna são incertos e invisíveis, pois não podem ser facilmente controlados ou previstos. Suas consequências usualmente só se tornam evidentes a longo prazo, a exemplo da poluição ambiental, dos acidentes nucleares, doenças relacionadas ao trabalho, efeitos colaterais indesejados de produtos químicos e medicamentos ou as mudanças no funcionamento dos ecossistemas terrestres devido às mudanças climáticas. Cfr. BECK, U. Risk Society: Towards a New Modernity. London: Sage Publications, 1992.
[3] CANO, J. S. De la seguridad compartida a la seguridad ecológica. Ecologia Política. Barcelona, v. 15, 1998, p. 11-30.
[4] CANO, op. cit., p. 19
[5] Simon, Dalby. Ecological metaphors of security: world politics in the biosphere. Alternatives, 23:3, 2008, p. 291- 320.
[6] ROTHSCHILD, E., 1995. What Is Security? Daedalus 124, p. 58-61.
[7] Cfr. Tarancón, A.C., Soler, E.S., Asensio, E.P., 2023. Integral Planetary Defense. A new concept of security for the Anthropocene. Cuad. Electrónicos Filos. Derecho 366-400. https://doi.org/10.7203/CEFD.48.25637, p. 372
[8] Essas circunstancias é englobada pelo Estado da arte ambiental da Constituição Brasileira de 1988, que inclui a justiça interespécies.
[9] CANO, op. cit., p. 25
[10] VEYRUNES, E. Las amenazas percibidas para la Amazonía: un estado del arte en términos de seguridad ambiental. Documento de investigación, 2008. Editorial Universidad del Rosario. Disponible en: http://www.urosario.edu.co/urosario_files/6f/6f1369dd-1e59-4258-84ad18e906e3b46e.pdfhttps://doi.org/10.48713/10336_1236, p. 11
[11] O conselho de segurança da ONU há décadas tem buscado conscientizar sobre essa realidade. Cfr. https://www.un.org/peacebuilding/news/climate-change-recognized-'threat-multiplier'-un-security-council-debates-its-impact-peace
[13] TROMBETTA, op. cit., p. 590-591.
[14] Webersik, C. Climate change and security: a gathering storm of global challenges, Security and the environment. Praeger, Santa Barbara, 2010, p. 112
[15] BARNETT, J., 2003. Security and climate change. Glob. Environ. Change, p. 9-10.