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A inexistência de um mundo ecológico comum


Guilherme Schneider de Moura

 

A figura do flâneur, conforme descrita por Walter Benjamin, é um indivíduo que observa a cidade, as vezes pela margem, outrora inserido na sociedade. Percorre a cidade com um olhar atento, absorvendo o contexto no qual está inserido, suas nuances e complexidades do mundo no qual vive.


Percorrer o espaço urbano ou um espaço de floresta, nos permite ter trocas de influências e experiências muito diferentes. Essa troca, a participação com o mundo real conserva nossas memórias, vivências e experiências, tornando o local um enraizamento para o ser humano.


A enchente de 2023 no Rio Grande do Sul, por outro lado, trouxe uma realidade completamente distinta para a região atingida, transformando seu cenário urbano e alterando drasticamente a dinâmica dos espaços que o flâneur costuma explorar.


Os espaços onde costumeiramente o flâneur percorria, como as ruas, as praças, calçadas, foram transformadas em rios, alguns espaços em lagos. Por onde antes caminhava tranquilamente, agora se vê obrigado a navegar por uma cidade submersa, onde a fluidez da água dita o ritmo dos passos e a direção dos olhares. A catástrofe natural impõe um novo tipo de contemplação, onde o flâneur não apenas observa, mas também é diretamente afetado pelo caos e pela desordem trazidos pela enchente.


A experiência do flâneur se transforma radicalmente. Ao invés de uma cidade conhecida, acolhedora e moderna, ele agora enfrenta um ambiente trágico, não previsível, com mudança do cenário urbano. A cada esquina pode revelar uma nova cena de devastação ou resiliência. A enchente desvendou as fragilidades da infraestrutura urbana, a fragilidade de cada município atingido, revelou as desigualdades sociais, confirmou o racismo ambiental, escancarou a importância de ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Obrigou não só o flâneur a confrontar realidades que muitas vezes passam despercebidas no cotidiano, mas a uma reflexão a todos nós sobre o mundo no qual ainda vivemos.


Aqui, a teoria de Bruno Latour sobre ecologia e o conceito de “política da natureza” se entrelaçam de maneira significativa. Latour argumenta que a ecologia não deve ser vista apenas como a relação entre seres vivos e seu ambiente, mas como uma rede complexa de atores humanos e não humanos que coexistem e interagem. No caso da enchente do Rio Grande do Sul, a água da enchente se torna um ator não humano de grande relevância, moldando e transformando a vida urbana e rural. A cidade, tradicionalmente vista como um espaço dominado pela ação humana, revela-se vulnerável às forças naturais, demonstrando a interdependência entre sociedade e ambiente.


A enchente no Rio Grande do Sul em 2023 serve como mais uma chamada de atenção em relação a vulnerabilidade das cidades diante de uma catástrofe ambiental. A ocupação de espaços irregulares para habitação, na maioria das vezes as famílias não têm opção de escolha onde querem morar, são os mais afetados, pois habitam áreas de florestas e encostas de morros. Toda essa tragédia pode ser uma reação da Terra, que decidiu começar a agir, chamando para si, a responsabilidade para um novo mundo.


A intensidade dos eventos extremos coloca diversas regiões, cidades e o meio rural em situação de muito maior de risco do que os modelos existentes de previsão podem calcular. Todo o país, inclusive o RS, vive uma emergência climática com catástrofes em potencial.


Um olhar atento a catástrofe, é possível ver sofrimento e solidariedade ao mesmo tempo. Não é difícil supor que as reações ao aquecimento global põem todos em choque, o sentimento de perder o mundo é coletivo. O problema precisa ser encarado de frente, porém, respostas triviais questionam a veracidade dos fatos que a ciência nos mostra. E é a elite quem vai negar os fatos, intoxicando todos ao seu entorno. É como defenestrar pérolas aos porcos.


A capacidade de adaptação às mudanças climáticas pode aumentar nossa resiliência, mas é preciso promover ações para uma economia mais sustentável, proteção à saúde, proteção à saúde mental dessas populações, políticas públicas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.


Não estamos percebendo o básico, parafraseando o biólogo e sociólogo Edward O. Wilson: “quando atacamos a biodiversidade, atacamos a nós mesmos!”

 

Referências


AZEVEDO, F. G. S. A cidade através do olhar metodológico de Benjamin. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 11, N.03, 2020, p. 2018-2046. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/51890.


CASTRO, B. J.; OLIVEIRA, M. A. Para além da dicotomia homem-natureza: a perspectivanão-moderna de Bruno Latour. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambiental. Rio Grande, v. 35, n. 2, p. 348-361, maio/ago.2018. Disponível em: < https://periodicos.furg.br/remea/article/view/8225/5390>


MACHADO, Ricardo. Das políticas da natureza à natureza das políticas. Um sobrevoo sobre a obra de Bruno Latour. Entrevista especial com Letícia Cesarino. Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/610559-das-politicas-da-natureza-a-natureza-das-politicas-um-sobrevoo-sobre-a-obra-de-bruno-latour-entrevista-especial-com-leticia-cesarino>


PAULA, M. de F. C. de. (1994). Tensões e ambigüidades em Walter Benjamin: a modernidade em questão. Plural, 1, 106-130. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.1994.68057


SARTORI, R. C. A democratização da natureza no contexto da Política e da Ciência. Revista Cronos, [S. l.], v. 10, n. 1, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/1773.


SELIGMANN-SILVA, Marcio. “Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência”: Walter Benjamin e a paixão pela cidade e pela história “ porosas ”. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, Brasil, v. 23, n. 40, p. 20–42, 2020. DOI: 10.11606/1982-8837234020. Disponível em: https://revistas.usp.br/pg/article/view/167388.

 

               

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