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Balanço da agenda ambiental do Governo Lula: parte III

Foto do escritor: Eduardo Schneider LerschEduardo Schneider Lersch

Eduardo Schneider Lersch


Até mesmo quem não acompanhava a evolução da degradação ambiental no país conseguiu observar algumas das consequências decorrentes desta, como a fumaça derivada das queimadas recordes vistas nos últimos meses, nas regiões do Cerrado, Pantanal e Amazônia[1]. O aumento das queimadas surge em um contexto em que o desmatamento estava em queda, mas o fogo foi potencializado através das oscilações do clima, do fenômeno do El Niño, da estiagem e da seca, além de ações criminosas deliberadas. O resultado foi um recorde de áreas queimadas desde o registro da série histórica:



As queimadas buscam facilitar a grilagem de terras, que são palco de novas queimadas para as fazendas e pastos ilegalmente criados, perpetuando esse ciclo. As queimadas no Pantanal já consumiram 2,3 milhões de hectares, mais de 15% do total do bioma só neste ano. Seguindo a cronologia das queimadas, percebe-se que a classe política só agiu e se manifestou com maior veemência quando a fumaça desta e outros pontos de fogos chegaram à Brasília. Foi assim que, após mais de meia década de tramitação[2], foi promulgada a Lei 14.944/2024 que institui a política nacional de manejo integrado do fogo[3].


Seria possível responsabilizar o governo, ou setores econômicos específicos por essa realidade¿[4] A resposta parece ser complexa. Certo que se deve buscar a responsabilização de indivíduos e grupos que coordenaram incêndios criminosos. Eventual resposta estatal encontrará obstáculos na busca por reparação dos danos ou aplicação de sanções aos seus perpetradores. As condutas representam uma sistêmica devastação ambiental, um grave e verdadeiro ecocídio que deveria ser tratado como tal. Os precedentes, contudo, indicam que a impunidade é a regra em casos assim.


Em 2019, uma ação coordenada por fazendeiros em diversos Estados do país resultou em uma série de queimadas que ficou conhecida como o “Dia do Fogo”. Aparentemente influenciados pelo discurso do então presidente Jair Bolsonaro, o intuito da ação era expandir as terras para o agronegócio. Mais de uma década depois, nenhum caso levou à condenação criminal e apesar de mais de 1 bilhão de multas impostas pelo IBAMA, menos de 50 milhões foram pagos até hoje[5].  Ressalte-se que, diferentemente ao ocorrido em 2019, centenas de pessoas foram presas ou detidas por envolvimento com as queimadas em 2024[6]. Espera-se que as investigações resultem em consequências concretas aos infratores e aos donos das propriedades onde surgiram significante parte das queimadas[7].


 A atual gestão do governo Lula 3 busca se apresentar como um completo contraste à administração de Jair Bolsonaro, sobretudo na pauta ambiental. Após as eleições de 2022, restou uma herança de degradação ambiental, projetos de lei e medidas administrativas – tomadas dentro de uma conjuntura acertadamente denominada de “infralegalismo autoritário”[8] – que partiram diretamente do empenho da administração Bolsonaro e sua base política.

Dessa herança o estudo da ONG “Política por inteiro” contabilizou 401 atos do poder executivo federal relacionados à pauta climática e ambiental que precisavam ser revogados ou revisados[9]. Muitos foram, a exemplo do simbólico Medida Provisória 1.150/2022, um dos últimos do governo Bolsonaro que fragilizava o combate à Mata Atlântica e foi até mesmo piorado durante a sua tramitação no Congresso Nacional[10].

Curiosamente, a base do atual governo Lula é composta dos mesmos partidos e bancadas que se aliaram a Jair Bolsonaro, funcionando à base do presidencialismo de “cooptação”, que funciona à base de emendas parlamentares de um congresso cada vez mais ganancioso[11]. Inicialmente, aparentava que o governo conseguiria negociar habilmente diante desse novo paradigma. Vetos foram mantidos em projetos que afrouxavam a proteção ambiental, a equipe técnica do Ministério do Meio Ambiente resistia apesar de pressões de poderosos lobbies dentro do congresso e do próprio governo.


Mas assim como a crise climática, a situação se deteriorou e o governo gradualmente destacou menor prioridade à agenda ambiental. Verdadeiras calamidades se alastram durante esse ano, com recordes de queimadas no Pantanal, Amazônia, com incremento da atividade extrativista do garimpo, desmatadores e grileiros. O desastre ambiental de Rio Grande do Sul persiste sendo uma disputa política entre governo federal e estadual, e faltam medidas com enfoque e coordenação adequada entre entes municipais, estadual e federal[12].

De fato, é impossível imputar omissão estatal como no governo federal anterior, mas avanços estão aquém do esperado. Parte dos resultados certamente foram agravadas por algumas circunstâncias institucionais como a longa greve de servidores ambientais do IBAMA, ICMBio e Ministério do Meio Ambiente, que somente se encerrou em agosto de 2024, após as negociações se prolongarem por mais de um ano. A paralisação foi significante. De acordo com dados de fiscalização, entre janeiro e abril de 2023, foram autuados 2.161 autos de infração, mas somente 389 no mesmo período em 2024, uma queda de aproximadamente 82%[13].


A correlação com a piora da degradação ambiental no Brasil está diretamente relacionada com a conjunção desses fatores: greve geral de servidores ambientais, falta de prioridade dentro do governo Lula 3, prioridade zero do meio ambiente no Congresso nacional, oscilações de temperatura agravadas pela crise climática e aumento de crimes ambientais.


Em 27 de agosto de 2024, o ministro Flávio Dino determinou que o governo utilize um contingente maior de forças de segurança na contenção das queimadas da Amazônia e Pantanal dentro do contexto das ADPF’s  743, 746 e 857[14]. Decisões como essa eram mais frequentes durante a gestão Bolsonaro e ilustram a atual conjuntura governamental. Para além disso, mostra-se necessário uma atuação das instituições do Estado sobre o que fazer com a terra devastada. Aventa-se a apropriação do Estado das terras, para evitar a grilagem e o aproveitamento pelos devastadores. Há controvérsias jurídicas quanto ao pedido, pois pode afetar terras de quem havia posse legítima e não participou das queimadas, todavia a prevalência do interesse público deve ser considerada.


Outra questão é de logística. Após a apropriação, o Estado precisa investir recursos para manter essas terras. Certamente ações são necessárias para evitar a desertificação das áreas, recompondo a fauna e flora e regenerando os ecossistemas. Isso demandaria recursos, voluntariedade e prioridade na agenda ambiental, objetivos distantes do atual paradigma político de Brasília.


Da mesma maneira, não aparenta ser prioridade do atual governo o fomento da proteção de populações indígenas e de defensores ambientais. O Acordo de Escazú que trata da ampliação da proteção desses grupos vulneráveis, do acesso à justiça ambiental e outros pontos de coordenação para uma proteção ambiental integrada ainda não foi ratificado pelo Congresso, embora tenha sido assinado pelo Brasil em 2018[15].  O Brasil é um dos países mais letais para defensores ambientais no mundo[16], e o Acordo de Escazú forneceria mais um instrumento para a consolidação de standards internacionais de proteção a direitos humanos em nosso arcabouço institucional doméstico.


Além disso, a atual gestão vem promovendo um apagão de dados na situação das tribos dos Yanomami[17], ainda impactados por desnutrição, doenças e empreendimentos criminosos dentro de suas reservas indígenas. Vale ressaltar que esse caso é acompanhado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que já recomendou a adoção de medidas para a melhor efetivação da proteção dessa tribo indígena[18].


É preciso ficar atento aos sinais incoerentes da atual gestão, que se diz democrática e preocupada com o avanço da agenda ambiental e climática, mas evidencia cada vez mais – através de atitudes públicas e particulares - que não exatamente compartilha desses valores[19]. À medida que o Brasil se depara com as crises e questões críticas expostas neste ensaio, é imperativo alinhar a retórica política com políticas ambientais acionáveis para obter um progresso significativo no enfrentamento das crises climáticas e ecológicas.


[1] PODER360. Brasil encerra setembro com 83.157 focos de incêndio. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-sustentavel/brasil-encerra-setembro-com-83-157-focos-de-incendio/. Acesso em: 27 set. 2024.

[2] BRASIL. Resposta de Lula à seca e fogo esbarra em desarticulação, verba, estrutura e Congresso. Folha de S.Paulo, 20 set. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/resposta-de-lula-a-seca-e-fogo-esbarra-em-desarticulacao-verba-estrutura-e-congresso.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha. Acesso em: 27 set. 2024

[3] BRASIL. Lei nº 14.944, de 4 de abril de 2024. Dispõe sobre a Política Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas e altera a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14944.htm. Acesso em: 27 set. 2024.

[4] ESTADÃO. O Brasil pega fogo: de quem é a culpa e o que fazer. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-brasil-pega-fogo-de-quem-e-a-culpa-e-o-que-fazer/. Acesso em: 27 set. 2024.

[5] FOLHA DE S.PAULO. Dia do fogo de 2019 fica impune e fazendas seguiram registrando incêndios. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/dia-do-fogo-de-2019-fica-impune-e-fazendas-seguiram-registrando-incendios.shtml#:~:text=Dia%20do%20fogo%20fica%20impune,09%2F2024%20-%20Ambiente%20-%20Folha. Acesso em: 27 set. 2024.

[6] FOLHA DE S.PAULO. Ao menos 221 pessoas já foram detidas no país por causa de queimadas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/09/ao-menos-221-pessoas-ja-foram-detidas-no-pais-por-causa-de-queimadas.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw. Acesso em: 27 set. 2024.

[7] FOLHA DE S.PAULO. Governo estuda medida provisória para barrar grilagem de terras atingidas por fogo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/governo-estuda-medida-provisoria-para-barrar-grilagem-de-terras-atingidas-por-fogo.shtml. Acesso em: 27 set. 2024.

[8] VIEIRA, O. V. et al. Supremocracia e infralegalismo autoritário: o comportamento do supremo tribunal federal durante o governo Bolsonaro. Novos estudos CEBRAP [online]. 2022, v. 41, n. 3

[9] POLÍTICA POR INTEIRO. Relatório Reconstrução: Propostas para uma política ambiental e climática de reconstrução nacional. Available at: https://www.politicaporinteiro.org/wp-content/uploads/2022/10/Relatorio-Reconstrucao.pdf. Accessed on: Sept. 10, 2024.

[10] O ECO. Lula veta retrocessos à Lei da Mata Atlântica incluídas na MP do Código Florestal. Disponível em: https://oeco.org.br/salada-verde/lula-veta-retrocessos-a-lei-da-mata-atlantica-incluidas-na-mp-do-codigo-florestal/. Acesso em: 27 set. 2024.

[11] FOLHA DE S.PAULO. Congresso ameaça retaliar governo Lula após ofensiva de PGR e STF contra emendas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/08/congresso-ameaca-retaliar-governo-lula-apos-ofensiva-de-pgr-e-stf-contra-emendas.shtml. Acesso em: 27 set. 2024.

[12] UOL. O que não foi feito: enchentes no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/25/o-que-nao-foi-feito-enchentes-rio-grande-do-sul.htm. Acesso em: 27 set. 2024.

[13] BRASIL. Autorizações de licenças do Ibama caem para menor nível em 10 anos. Metrópoles, 20 set. 2024. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/autorizacoes-de-licencas-do-ibama-caem-para-menor-nivel-em-10-anos. Acesso em: 27 set. 2024.

[14] BRASIL. STF determina mobilização para combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia. Conjur, 27 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-27/stf-determina-mobilizacao-para-combate-a-incendios-no-pantanal-e-na-amazonia/. Acesso em: 27 set. 2024.

[15] O projeto Ruptura assinou um manifesto solicitando a ratificação do acordo junto com outras organizações que lutam por direitos humanos e agendas ambientais. Cfr. HUMAN RIGHTS WATCH. Letter on the Ratification of the Escazú Agreement. Available at: https://www.hrw.org/pt/news/2024/03/26/letter-ratification-escazu-agreement. Accessed on: Sept. 10, 2024.

[16] BRASIL. Brasil é o segundo país que mais matou defensores ambientais em 2023, aponta ONG. Folha de S.Paulo, 27 set. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/09/brasil-e-o-segundo-pais-que-mais-matou-defensores-ambientais-em-2023-aponta-ong.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw. Acesso em: 27 set. 2024.

[17] BRASIL. Governo suspende boletim sobre mortes e doenças na Terra Yanomami. G1, 26 jul. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2024/07/26/governo-suspende-boletim-sobre-mortes-e-doencas-na-terra-yanomami.ghtml. Acesso em: 27 set. 2024.

[18] INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Provisional Measure SE-02: Yanomami Case. [S.l.]: IACHR, 2023, Available at: https://corteidh.or.cr/docs/medidas/yanomami_se_02_por.pdf. Accessed on: 08 jul 2024.

[19] Oppenheimer, Andrés. " Ludicrous U.N. speeches: Brazil, Colombia focus on Israel, ignore Venezuela crisis | Opinion. Miami Herald, 2024. Disponível em: https://www.miamiherald.com/news/local/news-columns-blogs/andres-oppenheimer/article292993409.html. Acesso em: 27 set. 2024.

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