Não é mais possível desenvolver qualquer debate sem considerar o Meio Ambiente e como o Direito se efetiva nele, uma vez que é a estrutura da existência de toda a vida no planeta, ao qual chamaremos de Vida Sistêmica. A relação entre a humanidade e o meio ambiente tem sido complexa e, frequentemente, marcada por uma exploração intensiva e não sustentável dos recursos naturais. Ao longo das últimas décadas, essa interação intensa, motivada principalmente por interesses industriais e econômicos, provocou consequências notáveis e muitas vezes devastadoras para o planeta. Segundo Passos (2009):
durante a história recente da humanidade, inúmeros fatos graves ocorreram, sem precedentes, alguns tão importantes que mudaram o rumo da vida na Terra. Resultado da intervenção humana pela busca de um desmedido desenvolvimento industrial, tais fatos alertaram a sociedade global acerca dos efeitos que os ataques ao meio ambiente podiam produzir. Contudo, esse estado de alerta só se fez sentir a partir da constatação de mudanças no meio ambiente mundial, como no caso da ocorrência das chuvas ácidas, do efeito estufa e do buraco na camada de ozônio. (...) surge, desse modo, a preocupação com a implementação de normas jurídicas específicas com o propósito de proteção ao meio ambiente, fazendo-se necessário, para tanto, a cooperação internacional entre os países (Passos, 2009, p.4-7).
A menção a eventos críticos exemplifica o impacto direto e, muitas vezes, irreversível, da ação humana no ambiente. Portanto, surge a necessidade iminente de uma resposta coletiva global, na forma de normativas e cooperação internacional, visando assegurar a proteção do nosso planeta para as gerações futuras.
Antropocentrismo x Biocentrismo
Pádua (2004) discute as consequências devastadoras da exploração insustentável dos recursos naturais, particularmente no contexto brasileiro. O autor aponta para uma tendência preocupante de negligência para com os ecossistemas nativos, enquanto monoculturas exóticas avançam de maneira desregrada. Ele salienta que o custo desta abordagem tem sido exorbitante, se medido em termos de danos ecológicos e a insustentabilidade dos sistemas econômicos que a promovem. Nesse sentido, Pádua argumenta que o preço que está se pagando por esta modalidade de ocupação do território ultrapassa em muito os ganhos de curto prazo que ela possa proporcionar [1].
A modernidade ainda nada a braçadas largas no mecanicismo do pensamento cartesiano e o antropocentrismo fornece as bases ao Direito Ambiental e Urbanístico para seguir orientado às relações entre seres humanos. Nessa perspectiva, o “Meio Ambiente” torna-se o resultado daquilo que o próprio ser humano cindiu de si mesmo. Neste contexto, Ferrajoli (2011, p. 59-61) chama a atenção para a transformação de alguns elementos naturais, como a água e a atmosfera, em bens comuns. Esses elementos, antes vistos como meras coisas, ganham um novo status jurídico e social devido à sua escassez crescente e à sua importância para a sobrevivência humana. Da mesma forma, produtos da indústria farmacêutica e alimentícia, como medicamentos e alimentos, são cada vez mais vistos como bens sociais essenciais que devem ser acessíveis a todos.
O autor argumenta que estas mudanças de status exigem a intervenção do direito. Contrariamente à mera valorização econômica, que pode resultar na privatização destes bens, Ferrajoli defende que a garantia destes como bens fundamentais requer uma decisão política civilizatória de submeter ao direito as relações de mercado. Isso, segundo o autor, é fundamental para garantir a sobrevivência e a saúde de todos. Neste sentido, Ferrajoli propõe a inclusão de “bens fundamentais” na discussão sobre direitos fundamentais, argumentando que a linguagem dos direitos mostra-se inadequada para tratar das técnicas de tutela exigidas por cada um destes bens. Segundo ele, o enfoque deve ser na proteção do próprio bem, por sua vitalidade e importância, mais do que apenas nos direitos humanos associados a ele. O conceito de antropocentrismo, portanto, dá lugar ao de biocentrismo, i.e, um entendimento do Meio Ambiente em seu conceito mais macro possível. Emerge, então, a figura de um Estado ambiental. Um Estado democrático de direito regido pelos princípios ecológicos, em outros termos, a ecologização do direito.
Direito Ambiental transdisciplinar
A transdisciplinaridade do Direito Ambiental é uma questão central nas manifestações de mudança do antropocentrismo ao biocentrismo. No Direito Ambiental é essencial, imprescindível e fundamental que seus partícipes sejam sujeitos transdisciplinares e componham as mais diversas áreas de atuação, para além dos graduados das ciências humanas - advogados, filósofos, sociólogos, historiadores -, como das demais áreas do conhecimento - ciências naturais e exatas -, cada qual com seu valor intrínseco necessário para uma visão holística, todos em sinergia. Segundo Silva (2000, p. 11-12), a figura do pesquisador ou especialista transdisciplinar é essencial para abordar a complexidade do mundo atual, uma vez que tal indivíduo possui a habilidade de reconhecer a própria especialização disciplinar e, ao mesmo tempo, interagir sem resistência com os conhecimentos oriundos de outras disciplinas. No contexto do Direito Ambiental, esse pesquisador poderia transitar entre disciplinas como ciências ambientais, política, sociologia rural e urbana, economia, entre outras.
Silva (2000) argumenta também que a realidade não pode ser captada de forma unidimensional, sendo sempre uma simplificação da complexidade ontológica da realidade. Nesse sentido, o objeto transdisciplinar forma-se a partir do entendimento que a realidade é complexa e não pode ser totalmente compreendida por um único domínio disciplinar. A questão ambiental, intrinsecamente complexa e interdisciplinar, certamente se encaixa nessa descrição. O autor ainda indica que para dar equilíbrio e consistência ao paradigma transdisciplinar, é necessário um terceiro elemento, não passível de racionalização, que permita a coexistência do sujeito e objeto transdisciplinares. Ele refere-se a esse elemento como uma vertical de acesso cognitivo, descrevendo-o como um espaço sagrado, o qual dá sentido à dialética entre sujeito e objeto na representação transdisciplinar da realidade. Silva (2000) também destaca a necessidade de evitar desvios no caminho transdisciplinar, particularmente a confusão entre diferentes níveis de realidade e percepção. Ele argumenta que cada nível é único e não deve ser explicado com base na linguagem de outro nível. No contexto do Direito Ambiental, isso significa que a perspectiva jurídica não deve tentar impor sua lógica a outras disciplinas ou realidades, como a ciência ambiental, geografia urbana ou a política.
Com efeito, são três as características essenciais da atitude transdisciplinar: rigor, abertura e tolerância. No campo do Direito Ambiental, o rigor refere-se à precisão e clareza no uso da linguagem jurídica; a abertura diz respeito à possibilidade de encontrar novas soluções e ideias na interseção entre disciplinas; e a tolerância indica o reconhecimento e o respeito pelas opiniões contrárias.
Portanto, transdisciplinaridade consiste em: (i) fazer o uso da linguagem de forma adequada, respeitosa, como figura principal na mediação das relações transdisciplinares, assegurando o valor do convívio entre os sujeitos de forma contextualizada; (ii) estar preparado para o inesperado que emerge das relações sujeito-objeto; (iii) reconhecer posições contrárias favoráveis ou desfavoráveis que auxiliem no entendimento das relações entre o indivíduo e o ambiente onde este se encontra. Nas palavras de Silva (2000, p.12), “o futuro, do ponto de vista transdisciplinar, não está determinado nem construído a priori. Há que se decidir por ele no presente”.
Conclusões para o caminho da solidariedade intergeracional
Partindo-se da importância e a necessidade de uma abordagem transdisciplinar ao Direito Ambiental, faz-se necessário um importante questionamento: a sociedade capitalista contemporânea está no caminho da solidariedade intergeracional? Reforçando a inexorabilidade de um biocentrismo transdisciplinar do Direito Ambiental, diversos estudos versam sobre a ineficácia da responsabilização ambiental, seja da pessoa jurídica ou do Estado. Brumadinho e Mariana nos saltam aos olhos e provam os limites da forma jurídica atual (Serra, 2020; Stolf et al, 2016). Não podemos desconsiderar os avanços alcançados através do direito, entretanto, conforme analisamos anteriormente, o mundo não gira mais em torno do ser humano e a vida independe da existência da humanidade, uma vez que já podemos entendê-la como Vida Sistêmica.
A sociedade contemporânea nos permite levar o Direito para além da mediação das regras de convívio social. Elevá-lo a um nível mais alto de atuação, capaz de tutelar para além da intraespécie, tratando o Meio Ambiente como um todo o qual estamos inseridos, uma amálgama de vidas, uma Vida Sistêmica. Um Direito sob os alicerces do biocentrismo e dos princípios da transdisciplinaridade, ampliando-se enquanto instrumento de manutenção e perpetuação da espécie humana em harmonia com toda a biodiversidade.
A fragilidade da vida quando observada de forma universal revela o quão fácil é sua extinção, e para garantir um “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, conforme o art. 225 da Constituição Federal, o objeto em tutela pelo Direito Ambiental deve ser a vida. Devemos conduzi-lo a um Direito Ambiental da Vida Sistêmica. No entanto, os caminhos adotados na atualidade colecionam evidências que sinalizam apontar na direção oposta a essas ideias.
“Pode ser que nenhum de nós veja o mundo como a gente espera que ele seja, mas isto não pode importar (...) nós temos que criar as condições para que as pessoas que vêm depois de nós, para que elas possam ter um mundo melhor do que foi entregue para a gente” (Almeida, 2020).
Notas
[1] “O que está sendo criticado aqui, como um elemento altamente negativo na formação do território brasileiro, é essa combinação entre o desprezo pelos ecossistemas nativos e o avanço descontrolado das monoculturas exóticas. O preço que tem sido pago por este modelo é muito alto em termos de destruição ecológica e insustentabilidade dos sistemas econômicos” (Pádua, 2004, p. 9).
Fontes e referências
ALMEIDA. S.L. Roda Viva | Silvio Almeida | 22/06/2020. YouTube, 22 de junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiNm0Iw. Acesso em: 1 set. 2023.
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Coleção Estado e Constituição, n. 11, trad. Alexandre Salim, et. al., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
MILARÉ, É.; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental, ano V, no 36. São Paulo: Editora RT, 2004, p. 9-42. Disponível em: https://egov.ufsc.br/portal/conteudo/antropocentrismo-x-ecocentrismo- na-ci%C3%AAncia-jur%C3%ADdica. Acesso em 1 set. 2023. MOLINARO, C. A.; D’ÁVILA, C. D. B.; NIENCHESKI, L. Z. Gaia entre Mordaças Dilemáticas: Antropocentrismo versus Ecocentrismo. Prim Facie, [S. l.], v. 11, n. 21, p. 03–20, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/primafacie/article/view/17272. Acesso em: 1 set. 2023. PÁDUA, J. A. . A ocupação do território brasileiro e a conservação dos recursos naturais In: MILANO, M. et al. (Orgs.) Unidades de conservação: Atualidades e Tendências, Curitiba: Fundação O Boticário, 2004, p12-19. Disponível em: http://arquivos.ambiente.sp.gov.br/cea/2011/12/JoseAPadua.pdf. Acesso em 1 set. 2023.
PASSOS, P. N. C. . A conferência de Estocolmo como ponto de partida para a proteção internacional do meio ambiente. Revista direitos fundamentais & democracia (UniBrasil) , v. 6, p. 1-25, 2009. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/18/17. Acesso em 1 set. 2023. SERRA, Giselle Turri. A RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA NO DANO AMBIENTAL: a ineficácia da indenização pecuniária para reparação da lesão ao bem jurídico por dano ambiental perante a inobjetividade do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. 2020. 67f. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/236829/001126377.pdf. Acesso em 1 set. 2023.
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