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O paradigma da grande cidade contemporânea como consumidora e produtora de alimentos

Vítor Soares Miceli [1]


A forma como ocupamos o espaço, por meio das atuais cidades do chamado capitalismo tardio, se mostra altamente destrutiva para os espaços naturais constituídos por matas, rios, e ambientes que comportam e sustentam a vida não só da nossa espécie. De modo geral, nossas cidades se tornaram uma grande máquina de produção de poluição (cerca de 70% dos gases de efeito estufa tem emissões urbanas, de acordo com o Banco Mundial (2010) e de potencialização dos cenários de desigualdade social com grande relação com as mudanças climáticas. Vale pontuar que esses cenários de mudança climática não são enfrentados de maneira similar por diferentes classes sociais, ou seja, tais impactos possuem um caráter social e, portanto, é conveniente denominá-los como impactos socioambientais (ORTIGOZA; CORTEZ, 2009).


Por sua vez, de acordo com um estudo que reviu a dieta urbana de cerca de 100 cidades, a alimentação é uma das principais fontes de gases de efeito estufa e de mudança de uso de solo, principalmente nas franjas urbanas (GOLDSTAIN et. al., 2017 apud IPCC 2019, p. 505). Dessa forma, pensar a dieta urbana acaba por ser uma abordagem interessante quando pensamos em impactos ambientais.


Vemos também que “adaptar a cadeia alimentar urbana representa um grande desafio e necessita de mudanças radicais” (IPCC, 2014, p. 568). De acordo com dados da FAO (2012), mantendo os atuais (e previstos) padrões de consumo, produção, possíveis melhorias de produtividade e o atual quadro de desperdício alimentar, necessitamos de um aumento de 60% no volume produzido atualmente para alimentar adequadamente toda a população humana em 2050.


Nessas grandes cidades contemporâneas, de modo geral, o abastecimento de alimentos frescos é feito por meio da produção de seus cinturões verdes (que possuem extrema importância socioambiental), mas pouco ou quase nada é produzido em maiores escalas dentro do perímetro urbano. Vale pontuar também, que o acesso aos alimentos frescos, portanto, mais ricos nutricionalmente, não se da de forma igualitária no território urbano, especialmente em locais periféricos:


A insuficiência de locais para aquisição de F&H [frutas e hortaliças] (...) foi relatada pela maioria dos entrevistados, além do abastecimento insuficiente (...), o que determinava a falta desses alimentos. A pouca quantidade de estabelecimentos que comercializarem alimentos frescos foi considerada um obstáculo à realização de práticas alimentares saudáveis. (TARRICONE, M. et al. 2018, p. 435)


Temos dessa forma, um claro afronte a segurança e soberania alimentar[2], conceitos que permeiam discussões relativas ao alimento e suas formas de produção, e que são consideradas extremamente importantes (FAO, 1996) sendo metas que buscam ser alcançadas em políticas, planos e leis. A segurança alimentar visa garantir que haja o consumo mínimo de calorias de modo a manter a existência humana com qualidade de vida, sem deficiências nutricionais. Já o conceito de soberania alimentar compreende que as necessidades nutricionais devem ser atingidas em confluência com o que um determinado povo culturalmente cultiva e se alimenta, sem a imposição de produtos que não estão nos hábitos alimentares locais.


Entretanto ainda encontramos cerca de 1/6 da população global em situação de desnutrição, mesmo após décadas da chamada Revolução Verde, que inicialmente visava a erradicação da fome, mas que acabou por potencializar concepções econômicas predatórias ao inserir a lógica alimentar em flutuações de mercado e pouca diversidade produtiva. Portanto, deve-se buscar sair da dinâmica da alimentação hiper especializada baseada nessas premissas, as commodities, que não garantem o acesso universal à alimentos de qualidade, pelo contrário, dificultam.


Logo, conceber mais espaços verdes, que possam ser produtores de alimentos no tecido urbanizado, tem um enorme potencial nutricional, e que também podem permitir melhor usufruto dos serviços ecossistêmicos, possibilitando a redução do estresse urbano sobre o meio ambiente e sobre os indivíduos (NAGIB, 2018). Cidades como Sofia e Cairo utilizam das hortas como mecanismos de melhorias ambientais, por exemplo.


A partir do que fora discutido e apresentado até aqui, faz-se necessário adentrar nos aspectos da produção alimentar dentro do tecido urbano, entendendo a potencialidade desses locais, as hortas urbanas, ou no limite que usualmente se denomina de periurbano, com as hortas periurbanas. As possibilidades de cultivo dentro do tecido urbano, normalmente se caracterizam por serem em locais de “sobras” urbanas, terrenos de difícil uso e/ou reservas de mercado, locais em que há especulação imobiliária ou que aguardam investimento público, valorizando o entorno. Caracterizam-se também por serem realizados em praças públicas e em terras sob linhas de transmissão, em virtude da impossibilidade legal de construções (ROSTICHELLI, 2013). Temos, portanto, um grande potencial de ocupação da terra urbana com locais produtivos.


Como exemplo, em pesquisa realizada pelo Instituto Escolhas (2020), 60 mil hectares de terras disponíveis na Região Metropolitana de São Paulo seriam suficientes para prover com produtos vegetais mais de 20 milhões de pessoas, criando aproximadamente 180 mil empregos diretos e indiretos na produção desses alimentos, através da tipologia de Agricultura Comercial Familiar.


De toda forma, vale pontuar que essa produção pode ser pautada no que preconiza um Sistema Alimentar Sustentável e Resiliente (SAS), em virtude de suas qualidades, sendo um conceito desenvolvido e defendido pela FAO, em conjunto com pesquisadores do tema, produtores e sociedade civil, além do próprio corpo técnico, servindo como um importante mote para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Destacamos como aspectos relevantes das SAS:


  • Aumentar o acesso a alimento saudável e nutritivo nas áreas urbanas, periurbanas e rurais;

  • Gerar trabalho em condições adequadas para todos os sujeitos implicados na cadeia de alimentos, notadamente à produção familiar;

  • Promover a interconexão entre espaços urbanos e rurais por meio da gestão adequada dos recursos e da relação entre produtores e consumidores;

  • Ampliar a resiliência contra os eventos climáticos extremos e reduzir a dependência de recursos provenientes de outras regiões (Instituto Escolhas, p. 15, 16 apud FAO, RUAF, 2015).

  • Temos também que uma boa aproximação com o que se pode encontrar no território se faz pela análise de dados econômicos, uma vez que infelizmente em populações de mais baixa renda, cenários de insegurança alimentar são maiores: “o dimensionamento da população ‘vulnerável à fome’ medida pelo nível de renda familiar reflete a compreensão, sem dúvida importante, que a fome e a pobreza sempre andam juntas.” (Maluf, 2006, p. 9-10).

 

Vale comentar também que há uma clara necessidade de se redesenhar as dietas humanas em termos globais. Dietas baseadas em produtos de origem animal (carnes, ovos, leites) possuem maior impacto ambiental (IPCC, 2019). Dietas baseadas em produtos de origem vegetal tem menor pegada ecológica e melhores índices de saúde pública (IPCC, 2019), além de terem maior relação com os direitos dos animais.

Sendo assim, concluímos com o apontamento de que:


muito mais numerosas foram as mortes causadas indiretamente pela fome, porque a sistemática falta de alimentação provoca doenças mortais: as vítimas viam-se tão enfraquecidas que enfermidades que, em outras circunstâncias, poderiam evoluir favoravelmente, nesses casos determinaram a gravidade que levou à morte. A isso chamam os operários ingleses de assassinato social e acusam nossa sociedade de praticá-lo continuamente. Estarão errados? (ENGELS, 2010, p. 63).





Referências


BANCO MUNDIAL. Cities and climate change: an urgent agenda. Washington: Urban Development & Local Government, v. 10. 2010.


CORTEZ, ATC., ORTIGOZA, SAG., orgs. Da produção ao consumo: impactos socioambientais no espaço urbano [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.


Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial e Plano de Ação da Cimeira Mundial da Alimentação. FAO. Roma.1996.


ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra; tradução B. A. Schumann; supervisão, apresentação e notas José Paulo Netto. Boitempo. São Paulo. 2010.


FAO, WFP, e IFAD. The State of Food Insecurity in the World: Economic Growth is Necessary but not Sufficient to Accelerate Reduction of Hunger and Malnutrition. Food and Agricultural Organization of the United Nations (FAO), the International Fund for Agricultural Development (IFAD), and the World Food Programme (WFP), FAO, Rome, Italy. 2012


INSTITUTO ESCOLHAS. Relatório: Mais perto do que se imagina: os desafios da produção de alimentos na metrópole de São Paulo. URBEM; Porticus. São Paulo. Novembro, 2020.


IPCC. Climate Change: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Part A: Global and Sectoral Aspects. Contribution of Working Group II to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Field, C.B., V.R. Barros, D.J. Dokken, K.J. Mach, M.D. Mastrandrea, T.E. Bilir, M. Chatterjee, K.L. Ebi, Y.O. Estrada, R.C. Genova, B. Girma, E.S. Kissel, A.N. Levy, S. MacCracken, P.R. Mastrandrea, and L.L. White (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA. 2014


IPCC. Climate Change and Land: an IPCC special report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems [P.R. Shukla, J. Skea, E. Calvo Buendia, V. Masson-Delmotte, H.-O. Pörtner, D. C. Roberts, P. Zhai, R. Slade, S. Connors, R. van Diemen, M. Ferrat, E. Haughey, S. Luz, S. Neogi, M. Pathak, J. Petzold, J. Portugal Pereira, P. Vyas, E. Huntley, K. Kissick, M. Belkacemi, J. Malley, (eds.)]. In press. 2019.


MALUF, R. S. Segurança Alimentar e Fome no Brasil: 10 anos da Cúpula Mundial de Alimentação. CERESAN, Relatórios Técnicos, 2. 2006.


NAGIB, Gustavo. Agricultura Urbana como Ativismo na Cidade de São Paulo. Editora Annablume. São Paulo, 2018.


Rostichelli, M. Entre a Terra e o Asfalto: a região metropolitana de São Paulo no contexto da agricultura urbana. Dissertação de mestrado apresentada para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2013.


TARRICONE, Mariana Garcia, et. al. Acesso à frutas e hortaliças em áreas periféricas da Região Metropolitana de São Paulo. Demetra. V. 13, N. 2. Rio de Janeiro. 2018.


[1] Texto se baseia em pesquisa desenvolvida para Trabalho de Conclusão de Curso do autor para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, no ano de 2021, com título Planejamento metropolitano e produção alimentar: mudanças climáticas, segurança alimentar e governança de recursos entre o rural e o urbano. Disponível em < https://bdta.abcd.usp.br/item/003062505>. Acesso em 11 mar. 2023.




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