Roberto Alexandre Levy
Ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade - Lei Federal n.º 10.257, de 2001 - consolidou a ordem constitucional no que diz respeito ao controle jurídico dos processos de uso, ocupação, parcelamento, construção, preservação e desenvolvimento do solo urbano. Esta lei foi concebida com o propósito de reorientar a atuação do poder público, em todas as esferas governamentais, bem como do mercado imobiliário, dos proprietários de imóveis e da sociedade, segundo novos parâmetros jurídicos, urbanísticos, econômicos, sociais e ambientais. Ao mesmo tempo, o Estatuto da Cidade estabelece-se como uma peça central, fruto de uma proposta abrangente de reforma jurídica formulada ao longo de décadas por diferentes atores sociais, em um contexto marcado por intensas disputas sociopolíticas e jurídicas. No entanto, cabe questionar até que ponto a efetividade do direito urbanístico vem se alinhando aos princípios do desenvolvimento sustentável e da função social da propriedade, especialmente quando considerados os desafios para a redução das desigualdades sociais.
O presente texto tem a intenção de descrever alguns instrumentos jurídicos municipais de recuperação de valorização imobiliária, seus objetivos de redução das desigualdades sociais, e alguns instrumentos jurídicos federais de licenciamento urbanístico, mais especificamente da Lei de Liberdade Econômica, estabelecendo uma relação entre eles, visando demonstrar suas contraposições, e o efeito de transformação da função social da propriedade em mero instrumento aparente, evitando que seus objetivos possam ser alcançados. Não se pretende esgotar as reflexões, mas levantar contradições jurídicas que demandam atenção no que concerne violações dos fundamentos jurídicos do Direito Urbanístico.
Instrumentos de Recuperação de Valorização Imobiliária
Antes de avançar na discussão sobre a recuperação de valorização imobiliária, é importante ressaltar o papel fundamental que ela desempenha na busca pela redução das desigualdades sociais. Em particular, os instrumentos de recuperação de valorização imobiliária são mecanismos jurídicos que deveriam auxiliar na redistribuição da riqueza e promover reduções nas desigualdades socioeconômicas.
Esses instrumentos carregam em si a necessidade de uma compreensão mais densa de suas fundamentações jurídicas e dos princípios do Direito Urbanístico. Segundo a ONU, os “objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade” (Nações Unidas, 2024), em termos mais objetivos, o aumento da qualidade de vida dos indivíduos. Para atingir essa meta, é imperativa a efetivação do princípio da solidariedade, bsucando a divisão de custos e benefícios, da cidade para a cidade.
Diante da escassez de recursos, faz-se necessário o manejo de valores econômicos ainda não disponibilizados, e um dos caminhos inexoráveis é a recuperação da valorização imobiliária, ou mais-valia da terra. O direito de propriedade é garantido nos fundamentos jurídicos, e traz sua função social de forma indissociável e obrigatória. De acordo com os jusfilósofos Liam Murphy e Thomas Nagel, “são as instituições legais que definem quem é dono do quê, e que essas instituições devem atender a critérios independentes de justiça distributiva”, i.e., a propriedade só existe se atender a justiça distributiva, ou função social, como é conhecida no Brasil.
Contudo, o que é propriedade? De acordo com o Código Civil Brasileiro:
[...] a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura e profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las [...]. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos (cf. Rabello, 2018).[1]
O que delimita a propriedade individual é o índice básico, ou índice útil, o necessário ao uso da coisa. Qualquer coisa acima do índice útil, deixa de ser particular e passa a pertencer ao coletivo, o direito de construir coletivo. Ao que se refere a função social da propriedade, este texto repousará na teoria de Leon Duguit,[2] que deu origem ao conceito jurídico, considerando uma superação aos anteriores ao século XX, baseados em fundamentos filosóficos modernos.[3] A propriedade e seu uso devem servir ao bem comum, contribuir para elevação da riqueza geral, e para o bem dos outros.[4]
Volta-se a atenção agora para a função social da propriedade pública, a função social da cidade, de amplitude e responsabilidade muito maiores que a privada, alçada do particular ao universal, que em sua miríade de características nos traz de volta ao que tratou-se no início do texto: recuperação da valorização imobiliária. A função social da propriedade como poder-dever. O poder-dever de agir é o irrenunciável e obrigatório poder administrativo conferido à administração que visa alcançar o fim público, um dever de agir e uma obrigação do administrador público de atuar em benefício da coletividade e seus indivíduos (Jus, 2014). O puro conceito de determinação ativa do conteúdo de propriedade com obrigação indissociável da função social exigida pela coletividade, nunca se apresentando como limitação ao direito como uma externalidade, mas sim o conteúdo da propriedade em si.
Dentre os instrumentos de gestão territorial urbana, é importante destacar o Imposto Progressivo Fiscal, sob as formas do IPTU e ITBI progressivos no tempo. Já é possível vislumbrar a aplicação da isonomia e da solidariedade, e para além, efetivar a distribuição das riquezas. Não se esgotam os dispositivos nem o poder-dever de gestão criativa em busca das respostas para as demandas municipais. Cabe neste momento, resgatar os princípios regentes do Direito Urbanístico, a saber, dignidade da pessoa humana, isonomia de benefícios decorrentes do processo de urbanização e vedação do enriquecimento sem causa. O código civil traz ipsis litteris o trecho “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o devidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários” (Jusbrasil, 2021), portanto, não nos deixa dúvida da aplicação inexorável de medidas para reaver a mais-valia da terra. A tributação imobiliária é instrumento de política urbana, e o Imposto Progressivo Fiscal um meio de capturar mais de quem tem mais e menos de quem tem menos, não obstante, subutilizados pelo Poder Público nos dias atuais.
Lei da Liberdade Econômica
Apesar da promessa que os instrumentos de recuperação de valorização imobiliária oferecem na teoria, a prática é frequentemente mais complicada. Uma das principais barreiras é a recente Lei da Liberdade Econômica, que se apresenta como um contraponto significativo a esses instrumentos. Nessa segunda parte, dá-se um salto temporal para, em poucas palavras, entender questões de licenciamento urbanístico, mais especificamente na forma da recente Lei nº 13.874/2019 ou Lei da Liberdade Econômica. Tendo como finalidade garantir proteção à livre iniciativa e ao exercício da atividade econômica, há um amplo debate no legislativo sobre sua constitucionalidade, sobretudo no Direito Urbanístico em seus dispositivos.
Logo no primeiro artigo o dispositivo já se apresenta de forma confusa e inconstitucional, como é possível ver no trecho da nota técnica emitida pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico:
Essa definição de atos públicos de liberação confunde o direito à livre iniciativa com o exercício do direito de propriedade imobiliária. Embora conceitos próximos, seus regimes jurídicos são absolutamente distintos. No caso da propriedade urbana, por exemplo, o planejamento tem natureza jurídica vinculante, o que torna as regras do plano diretor obrigatórias para o setor público e privado. As atividades econômicas, pelo contrário, são regidas pela plena liberdade de atuação. O planejamento estatal não poderia de fato limitar, nesse caso, a livre iniciativa. Porém, o projeto de lei, ao tratar da liberdade econômica confunde essas duas dimensões, o que implica em inconstitucionalidade manifesta (Researchgate, 2019).
O inciso I art. 3º consiste em “desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria [...], sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica” (Lei nº 13.874, 2019), onde a referência a “atividade econômica de baixo risco” não encontra definição de especificidades, abrindo espaço a qualquer subjetividade para enquadramento no dispositivo. O inciso XI, objeto de maior interesse nesta análise, abarca a não exigência de “medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva” com vistas a estudos de impacto e outras liberações pertinentes ao licenciamento sem abordar especificidades que auxiliem na qualificação do considerado abusivo ou justo, resultando num dispositivo ambíguo, com severas dificuldades de compreensão. O artigo 4º tenta dar forma ao conteúdo do artigo anterior, mas permanece escorado em definições abstratas, sem nenhuma especificação ou determinação de parâmetros claros para enquadramento em algum de seus itens, novamente incorrendo em ambiguidades e incompreensões, comprometendo e até anulando por completo a função social da propriedade.
Resgata-se um outro trecho da mesma nota técnica supramencionada para conceder o fechamento irrefutável do argumento presente: “se a proteção ao bem-estar coletivo onera interesses privados, o projeto de lei prevê, de forma inconstitucional, que o Estado deve se omitir e sucumbir à autonomia da vontade do particular e não mais do público” (Researchgate, 2019). Como se nota, há uma lacuna não preenchida acerca das regras específicas de licenciamento, especialmente em âmbito federal que claramente serve de apoio para a implantação dos dispositivos da Lei da Liberdade Econômica, sob a falsa égide da desburocratização, na realidade a serviço da promoção da desregulação urbanística.
Medidas ou contramedidas?
Com base nas discussões anteriores sobre os instrumentos de recuperação de valorização imobiliária e a Lei da Liberdade Econômica, torna-se evidente que há uma tensão significativa entre as aspirações de igualdade social e as realidades jurídicas e econômicas. Isso conduz ao questionamento: encontra-se diante de medidas ou contramedidas no cenário urbanístico brasileiro?
Não se pode esquecer que o princípio da internalização das externalidades é de ligação íntima com a qualidade de vida das cidades. Conforme foi abordado anteriormente, a função social como poder-dever repousa no conceito de determinação ativa do conteúdo de propriedade com obrigação indissociável da função social exigida pela coletividade, nunca se apresentando como limitação ao direito como uma externalidade, mas sim o conteúdo da propriedade em si.
Por fim, encontrou-se evidências que a legislação brasileira possui há um tempo considerável dispositivos de recuperação de valorização imobiliária subutilizados. Não obstante, verifica-se na realidade atual a implementação de novos dispositivos que impedem a aplicação efetiva dos anteriores pelo Poder Público, favorecendo grandes proprietários urbanos na comprovação apenas de forma aparente das funções sociais de suas propriedades. Com efeito, amparados por ambiguidades e incompreensibilidades jurídicas, resultando na violação dos princípios básicos do Direito Urbanístico e dos objetivos fundamentais da Constituição Federal Brasileira. O Direito Urbanístico torna-se, portanto, meramente reduzido à norma e adequado aos avanços da técnica. Aos juristas resta apenas o papel de movimentar-se dentro da categoria do dever-ser.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, C. E. A Função Social da Propriedade. Curitiba, 2014. Disponível em: https://slideplayer.com.br/slide/368427. Acesso em: 03 outubro 2024.
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. A construção do Direito Urbanístico brasileiro: desafios, histórias, disputas e atores. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Coletânea de legislação urbanística: normas internacionais, constitucionais e legislação ordinária. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
HOSHIKA, Thaís. Pachukanis e a forma jurídica: contribuição à crítica da teoria geral do direito. São Paulo: Lavrapalavra, 2022. 216p.
JELINEK, Rochelle: O Princípio da Função Social da Propriedade. Porto Alegre. 2006. p.10. Disponível em: https://www.mprs.mp.br/media/areas/urbanistico/arquivos/rochelle.pdf. Acesso em: 03 outubro 2024.
JUS: Poderes e deveres do administrador público. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34829/poderes-e-deveres-do-administrador-publico. Acesso em: 03 outubro 2024.
JUSBRASIL: Artigo 884 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002. 2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10680578/artigo-884-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002. Acesso em: 03 outubro 2024.
LEI Nº 13.874, DE 20 DE SETEMBRO DE 2019. Cap. II, Art 3º, Inciso I. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. 2019. Acesso em: 03 outubro 2024.
LEVY, Mariana. NEAD/FMP. Direito Urbanístico. Lei da Liberdade Econômica. Porto Alegre, 2022. Disponível em: https://fmp.instructure.com/courses/687/files/78266/. Acesso em: 03 outubro 2024.
NAÇÕES UNIDAS: Sobre o nosso trabalho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 03 outubro 2024.
RABELLO, Sônia: Zoneamento e seu impacto nas políticas habitacionais, de patrimônio e de infraestrutura. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/wp-content/uploads/sites/5/2018/05/Profa.-Sonia-Rabello_S%C3%A3o-Paulo-C%C3%A2mara-Municipal-PL-zoneamento.pdf. Acesso em: 03 outubro 2024.
RESEARCHGATE: Nota técnica sobre a Medida Provisória nº 881/2019, que institui a declaração de direitos da liberdade econômica. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340417120_Nota_tecnica_sobre_a_Medida_Provisoria_n_8812019_que_institui_a_declaracao_de_direitos_da_liberdade_economica. 2019. Acesso em: 03 outubro 2024.
[1] Trecho onde são tratados os termos legais da propriedade, direitos de vizinhança e direitos de construir.
[2] Jurista francês e proeminente teórico da sociologia do direito.
[3] Montesquieu, Hobbes, Rousseau, Bussuet, Mirabeau, Bentham, Locke e de José Diniz de Moraes (cf. JELINEK, 2006).
[4] De acordo com a CF 88, são objetivos fundamentais da República uma sociedade livre, justa e solidária.
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